sábado, 26 de março de 2016

É presidentA!

26/03/2016, 20:45, estacionamento da usina do gasômetro em Porto Alegre, noite chuvosa de sexta-feira santa, temperatura agradável para um gaúcho que vem sofrendo há meses com o calorão.
Saí de casa para tomar um ar fresco, espairecer a cabeça. Só noticia ruim na tv, na internet. Resolvi rodar um pouco, ouvindo música no carro, mas não muito, porque com a gasolina a quase quatro reais o litro, tem que cuidar.
E também não dá pra ir onde o pensamento gostaria, muita violência, não se pode parar em qualquer lugar.
Na margem iluminada do Guaiba fico olhando pra água até ser engolida pela escuridão. Johnny Cash conta como e porque matou Delia, a quem tanto amava. A cabeça vazia, os sentidos aguçados, afinal é noite e eu já disse que a coisa tá complicada na rua.
Do nada percebo um praticante de cooper (pelo menos era assim que chamávamos as pessoas que corriam), trotando em ritmo lento, a uns 150 metros, vindo da direção da Av. Ipiranga, vestindo agasalho escuro com capuz e calças justas, na minha direção. Fico alerta, levo a mão ao cabo da pistola; vai saber?
Conforme se aproxima, noto que deve ser uma mulher, pelo tamanho e formato do corpo. Alivio a pressão sobre a arma, mas a mantenho à mão.
A meio caminho surge outro corredor, vindo de outra direção, saído das sombras das árvores da Av. Mauá. Mas este não traja roupa de corrida, vem de abrigo e casacão, sem ritmo, afobado, parece um predador desajeitado e tenho a impressão que pretende interceptar a mulher.
Ela percebe e apressa o ritmo, olha pra trás, diminui o passo, parece querer voltar, mas nota o meu carro e volta a correr para mim.
O outro também me vê e imita a colega, aumentando a velocidade, mas suas roupas inadequadas e a falta de jeito o atrapalham, o que o deixa pra trás.
A mulher, agora a uns 50 metros, já removeu da cabeça o capuz e revelou o corte de cabelo curto, parece bem franzina e o pouco que consigo ver de sua fisionomia me parece familiar. 
Levo um susto, não pode ser! Tomo novamente a pistola, agora sabendo que terei que usá-la, acendo os faróis e começo a abrir a porta.
O outro corredor diminui, aumenta a distância entre nós e começa a fazer um arco, como que tentando nos flanquear, sem muita convicção.
Desço do carro, olho bem para ela e falo da maneira mais calma possivel: Senhora Presidente, sou policial, acalme-se que vou ajudá-la! O outro, ao me ouvir, interrompe a manobra e desaparece no escuro da praça. Ela pára a 10 metros de mim, ofegante, leva as mãos à cintura e fala, em tom de voz enérgico: É presidenta, seu polícia, presidenta!!

sexta-feira, 4 de março de 2016

O prédio caiu


Pequenos assassinatos

A que ponto chegamos.

Aposto que você já ouviu essa frase em algum lugar que frequenta, ou na conversa com um amigo, um parente, um vizinho. Ou até mesmo na TV, na voz de um ministro do Supremo.

O que nós estamos vivendo aqui neste momento guarda alguma semelhança com a “teoria da janela quebrada” (broken windows theory), que é o resultado de um estudo realizado por dois professores de Harvard - um cientista político e um psicólogo criminologista - mostrando que há relação de causalidade entre desordem e criminalidade.

Em resumo, a tese é a seguinte: se uma janela do apartamento de um prédio quebrar a não for consertada imediatamente, as pessoas são levadas a crer que aquele apartamento está abandonado, já que ninguém se importa com ele, e esse abandono incentiva depredações de outras janelas, mais atos de vandalismo e até invasão do prédio.

Ou seja: quem não se preocupa com pequenos atos de marginalidade acaba sendo cada vez mais tolerante com a criminalidade em todos os seus estágios. Até que ela se instale definitivamente.

A confusão entre pequenos e grandes crimes acaba provocando uma perda de referência por onde se infiltra e se instala esse vírus de amoralidade, essa anomia que destrói os nervos e que corrói a alma do país.

Achar graça numa estrela vermelha que a primeira dama instala no jardim do Palácio da Alvorada é o primeiro vidro da janela quebrada. Desconhecer o que significa a promiscuidade entre público e privado, entre governo e partido, entre governo e Estado, entre Estado e partido, pode parecer uma minúcia, uma ridicularia, mas não é. Pelo menos em países sérios não é.

Quebrado a primeira janela, passa-se a zombar dos pequenos delitos, como se eles não fossem a pura ressonância dos delitos maiores: ah, o pedalinho dos netos do ex-presidente, ah, a canoa baratinha da dona Marisa, ah, o elevador privativo do tríplex do Guarujá.

Quanta implicância desses coxinhas, como se fosse normal alguém receber benesses de empreiteiras que vivem de contratos públicos e como se fosse normal recusar-se a prestar depoimentos solicitados pela Justiça sobre eles.

Perdido o referencial daquilo que separa a bravata ideológica do crime puro e simples, acontece isto: um sindicalista de nome Armando Tripodi, que foi chefe de gabinete do presidente da Petrobras entre 2003 e 2012, nas gestões José Eduardo Dutra e José Sergio Gabrielli, publica no site oficial da Petrobras a confissão de um crime e nada acontece com ele. Talvez tenha até sido elogiado pelo companheiro-chefe.

Num depoimento ao site institucional “Memória Petrobras” ele conta que usou o dinheiro do imposto sindical para fazer campanha para o companheiro Lula, e narra, cheio de orgulho, todos os lances de seu heroico crime. É proibido por lei usar dinheiro do imposto sindical para campanhas políticas, mas quem se lixa?

Se a janela está quebrada, o prédio está abandonado e tudo é permitido.

Da janela quebrada ao pântano moral em que o País mergulhou, a distância é mínima. Princípios morais não têm peso, nem largura, nem altura, nem espessura. Ou existem ou não existem.

A delação premiada de Delcídio do Amaral mostra não apenas que a janela está quebrada. Mostra que o prédio já ruiu em cima do governo, e mesmo que ele sobreviva, está irremediavelmente ferido de morte.